A Criminologia das Drogas, Prevenção, Dependência Química e o Papel do Profissional da Criminologia nas Políticas de Segurança Pública: Uma Análise Abrangente e Atualizada

Introdução:

A questão das drogas representa um dos mais intrincados desafios contemporâneos, com ramificações profundas que se estendem da saúde pública à segurança social e jurídica.

No Brasil, a complexidade desse fenômeno é acentuada por um histórico de políticas proibicionistas e por constantes debates sobre a legislação aplicável. A criminologia, enquanto campo de estudo que investiga o crime, o criminoso, a vítima e as formas de controle social, oferece um arcabouço teórico e prático indispensável
para a compreensão e o enfrentamento dessa problemática.

Este artigo tem como objetivo aprofundar a análise da criminologia das drogas, explorando suas teorias
fundamentais, o impacto social da criminalização e as estratégias de prevenção e tratamento da dependência química.

Adicionalmente, será dedicada atenção especial à evolução da legislação brasileira sobre drogas, com foco na Lei nº 11.343/2006 e suas alterações mais recentes, incluindo as discussões sobre a descriminalização do porte para uso pessoal. Por fim, será delineado o papel multifacetado e crucial do profissional da criminologia na formulação e implementação de políticas de segurança pública que sejam não apenas eficazes no combate ao tráfico, mas também humanizadas, pautadas na redução de danos e na promoção dos direitos humanos.

A Criminologia das Drogas: Teorias, Impacto Social e Críticas ao Proibicionismo.

A criminologia das drogas constitui um campo de estudo essencial para desvendar as complexas interações entre o uso e o tráfico de substâncias psicoativas e as dinâmicas criminais, bem como as respostas sociais e estatais a esses fenômenos. Ao longo da história, a abordagem dominante tem sido o proibicionismo, uma política que, apesar de seus objetivos declarados de redução do consumo e do tráfico, tem se revelado ineficaz e, em muitos aspectos, contraproducente.

Conforme destacado por Katie Arguello, o proibicionismo não apenas falhou em conter o avanço do mercado ilícito, mas também gerou consequências sociais devastadoras, como o aumento da violência e o encarceramento em massa.

A Construção Social da ‘Droga’ e a Lógica Proibicionista

A criminologia crítica oferece uma perspectiva fundamental para compreender como o conceito de ‘droga’ é socialmente construído e como essa construção serve para legitimar políticas de controle social que perpetuam a desigualdade e a marginalização. O discurso proibicionista, que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial com a atuação de organismos internacionais como a ONU, categoriza arbitrariamente substâncias psicoativas, agrupando-as sob o termo genérico de ‘droga’ para justificar a repressão. Essa categorização,como aponta Del Olmo, não se baseia em critérios científicos intrínsecos às substâncias, mas sim em conveniências políticas e morais. O resultado é uma política criminal que, sob o pretexto de proteger a saúde pública, expande o poder punitivo do Estado e restringe o Estado de Direito, transformando a repressão em sua principal ferramenta de atuação. Essa lógica proibicionista, ao invés de resolver o problema das drogas, cria um ‘mercado de ilicitudes’ altamente lucrativo, onde a ausência de regulamentação e fiscalização permite a proliferação de organizações criminosas e a exploração de vulnerabilidades sociais. A criminalização, portanto, não é uma resposta neutra ou
objetiva, mas uma construção social que reflete e reforça as estruturas de poder existentes.

A Seletividade do Sistema de Justiça Criminal e o Encarceramento em Massa

Um dos efeitos mais perversos e evidentes do proibicionismo é a seletividade intrínseca do sistema de justiça criminal. No Brasil, dados estatísticos do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), conforme citado por Arguello, revelam que a esmagadora maioria da população carcerária envolvida com o tráfico de drogas é composta por jovens, afrodescendentes e indivíduos de baixa renda. Essa realidade desvela que a criminalidade não é uma característica inerente a determinados grupos, mas sim um status imposto por um processo de criminalização que, de forma discriminatória, seleciona e pune os mais vulneráveis da sociedade, enquanto os grandes beneficiários do mercado ilícito muitas vezes permanecem impunes. O foco da repressão penal recai desproporcionalmente sobre os elos mais frágeis da cadeia do tráfico, como os chamados ‘aviões’, ‘mulas’ e ‘vapores’, que são detidos com pequenas quantidades de substâncias e, frequentemente, sem qualquer tipo de
armamento. Essa prática, além de ineficaz no desmantelamento das grandes redes de tráfico, perpetua a associação entre pobreza e criminalidade, servindo como um mecanismo de controle social e de manutenção das desigualdades sociais.

A metáfora da “guerra às drogas” não é apenas uma figura de linguagem; ela se traduz em políticas de segurança pública militarizadas, que transformam territórios periféricos em campos de batalha e seus moradores em alvos. A utilização das Forças Armadas em conflitos civis, como a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, tem como consequência o aumento da violência e a violação sistemática de direitos individuais, borrando as fronteiras entre o poder militar e o poder punitivo e colocando em risco os fundamentos da democracia e dos direitos humanos. Nesse cenário de “guerra às drogas”, não há vencedores. A sociedade como um todo é a grande perdedora, pois essa política recrudesce a violência, fomenta a corrupção, alimenta a intolerância e promove o desrespeito aos direitos fundamentais. O poder punitivo do Estado se expande de forma desproporcional e ineficaz, criando um ciclo vicioso de repressão e marginalização que não resolve o problema das drogas, mas o agrava, gerando mais sofrimento e instabilidade social .

Prevenção e Tratamento da Dependência Química: Abordagens e Desafios

A dependência química é reconhecida como uma doença crônica e multifatorial, que afeta não apenas o indivíduo, mas também sua família e a sociedade como um todo. A complexidade de suas causas e manifestações exige abordagens abrangentes e integradas de prevenção e tratamento, que vão além da mera repressão e consideram as dimensões biológicas, psicológicas e sociais do problema. A efetividade dessas
intervenções é crucial para mitigar os danos associados ao uso de drogas e para promover a saúde e o bem-estar coletivo.

Estratégias de Prevenção Baseadas em Evidências

A prevenção do uso de drogas é um pilar fundamental na construção de uma sociedade mais saudável e segura. As estratégias de prevenção são classificadas em três níveis principais: universal, seletiva e indicada. A prevenção universal, direcionada a toda a população, tem como objetivo fortalecer fatores de proteção e reduzir fatores de risco, por meio de programas educacionais em escolas, campanhas de conscientização em massa e iniciativas que promovam o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. A prevenção seletiva, por sua vez, foca em grupos específicos que apresentam maior vulnerabilidade ao uso de drogas, como adolescentes em situação de risco social ou comunidades com altos índices de violência. Já a prevenção indicada é voltada para indivíduos que já manifestam uso problemático de substâncias, mas que ainda não desenvolveram dependência,
buscando intervir precocemente para evitar a progressão do quadro.

Para que as ações de prevenção sejam verdadeiramente eficazes, é imperativo que sejam baseadas em evidências científicas, adaptadas às realidades locais e implementadas de forma contínua e integrada. O fortalecimento de redes de apoio familiar e comunitário, a promoção de ambientes saudáveis e a oferta de oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional são elementos cruciais para a construção de uma cultura de prevenção.

O Tratamento da Dependência Química: Um Processo Multidisciplinar e Humanizado

O tratamento da dependência química é um processo complexo e individualizado, que demanda uma abordagem multidisciplinar e humanizada. Diferentes modalidades terapêuticas têm se mostrado eficazes, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), que auxilia os pacientes a identificar e modificar padrões de pensamento e comportamento disfuncionais relacionados ao uso de drogas. Além da TCC, outras abordagens incluem a terapia familiar, a farmacoterapia (quando indicada), grupos de apoio e a reinserção social. É fundamental que o tratamento seja pautado pelo respeito à dignidade do indivíduo, pela confidencialidade e pela voluntariedade, evitando-se abordagens coercitivas que podem gerar mais danos do que benefícios.

O reconhecimento da dependência química como uma doença crônica, e não como uma falha moral ou de caráter, é essencial para desmistificar o problema e combater o estigma associado. A abordagem de redução de danos, que busca minimizar as consequências negativas do uso de drogas quando a abstinência total não é uma
realidade imediata, tem ganhado destaque em diversos países, como Holanda e Suíça, e representa uma alternativa pragmática e humanitária às políticas puramente proibicionistas. Essa abordagem reconhece que, embora o ideal seja a abstinência, a realidade muitas vezes exige estratégias que visem a proteção da saúde e a segurança do usuário, mesmo que ele continue a usar drogas.

Políticas Públicas e o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD)

No Brasil, a Lei nº 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), que tem como objetivo integrar as ações de prevenção, tratamento, reinserção social e repressão ao tráfico de drogas.

O SISNAD prevê a articulação entre as diferentes esferas de governo e a sociedade civil para a formulação e implementação de políticas sobre drogas. No entanto, a efetividade do SISNAD ainda enfrenta desafios significativos, especialmente no que tange à garantia de acesso a serviços de tratamento de qualidade e à superação da lógica predominantemente repressiva.

Apesar dos avanços na legislação, a prática ainda reflete uma forte ênfase na criminalização, o que gera sobrecarga no sistema prisional e dificulta a abordagem de saúde pública. A discussão sobre a descriminalização do porte para uso pessoal, que será aprofundada na próxima seção, é um exemplo da tensão entre a abordagem de saúde e a abordagem punitiva. É fundamental que as políticas públicas sobre drogas sejam continuamente revisadas e aprimoradas, com base em evidências científicas e nas melhores práticas internacionais, para que possam, de fato, promover a saúde, a justiça social e a segurança pública de forma integrada e humanizada.

A Nova Lei das Drogas no Brasil: Lei nº 11.343/2006 e as Recentes Alterações

A legislação brasileira sobre drogas tem sido um campo de intensos debates e modificações, refletindo as tensões entre as abordagens punitivistas e as que defendem a saúde pública e a redução de danos. A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, conhecida como a Lei de Drogas, é o marco legal atual que institui o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e estabelece normas para a repressão ao tráfico ilícito e o tratamento de usuários e dependentes. No entanto, esta lei tem sido alvo de diversas interpretações e, mais recentemente, de importantes discussões e alterações.

A Lei nº 11.343/2006: Contexto e Objetivos

A Lei de Drogas de 2006 representou uma mudança significativa em relação à legislação anterior (Lei nº 6.368/1976), principalmente ao diferenciar o usuário do traficante e ao abolir a pena de prisão para o porte de drogas para consumo pessoal. O objetivo declarado da lei era desviar o usuário do sistema penal, encaminhando-o para programas de tratamento e reinserção social, enquanto endurecia a repressão ao
tráfico. Para o usuário, a lei prevê penas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a curso ou programa educativo.

Contudo, a ausência de critérios objetivos na lei para diferenciar o usuário do traficante tem gerado grande discricionariedade por parte das autoridades policiais e judiciárias, resultando em um aumento do encarceramento de pequenos traficantes, muitas vezes usuários que são enquadrados como traficantes devido à seletividade do sistema penal. Essa ambiguidade tem sido um dos pontos mais criticados da legislação, contribuindo para o superencarceramento e para a manutenção da lógica proibicionista.

As Recentes Discussões e Alterações: PEC das Drogas e Decisão do STF

Recentemente, o cenário legislativo e jurídico em torno das drogas no Brasil tem sido palco de importantes movimentações. Em abril de 2024, o Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, que visa criminalizar a posse e o porte de qualquer quantidade de droga ilícita. Essa PEC, que segue para a Câmara dos Deputados, busca inserir na Constituição Federal um inciso que torne crime a posse e
o porte de entorpecentes ou drogas afins sem autorização ou em desacordo com a lei.

Paralelamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem julgado a constitucionalidade do Artigo 28 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), que trata do porte de drogas para consumo pessoal. Em junho de 2024, o STF formou maioria para descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal, estabelecendo que não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40 gramas da droga. A decisão do STF, no entanto, não legaliza a maconha, mas sim a retira da esfera criminal, mantendo a ilicitude administrativa e a possibilidade de aplicação de medidas socioeducativas.

Essa dualidade entre a PEC aprovada no Senado e a decisão do STF evidencia a complexidade e a polarização do debate sobre as drogas no Brasil. Enquanto o Congresso Nacional avança em uma direção mais punitivista, o Poder Judiciário busca uma abordagem mais alinhada com a saúde pública e os direitos individuais. É importante ressaltar que a decisão do STF se aplica apenas ao porte de maconha para uso pessoal, e não ao tráfico de drogas, que continua sendo crime com penas severas.

Impactos e Perspectivas Futuras

As recentes discussões e alterações na Lei de Drogas têm impactos significativos. A PEC das Drogas, se aprovada na Câmara, pode aumentar ainda mais o encarceramento e a seletividade do sistema penal, dificultando a diferenciação entre usuário e traficante. Por outro lado, a decisão do STF, ao descriminalizar o porte de maconha
para uso pessoal, pode reduzir a sobrecarga do sistema judiciário e permitir que os recursos sejam direcionados para o combate ao tráfico em larga escala e para políticas de saúde pública. No entanto, a falta de critérios claros para diferenciar o usuário do traficante ainda permanece um desafio, e a implementação efetiva das medidas
socioeducativas para usuários dependerá de investimentos em infraestrutura e programas de tratamento.

O futuro da política de drogas no Brasil dependerá da capacidade de diálogo entre os poderes Legislativo e Judiciário, bem como da participação da sociedade civil e de especialistas na área. É fundamental que as decisões sejam pautadas em evidências científicas, na proteção dos direitos humanos e na busca por soluções que promovam a saúde, a segurança e a justiça social de forma integrada.

Conclusão

A análise da criminologia das drogas revela um cenário complexo e desafiador, onde a abordagem proibicionista, historicamente dominante, tem se mostrado ineficaz e geradora de graves consequências sociais, como o superencarceramento e a violação de direitos humanos. A dependência química, por sua vez, exige uma compreensão aprofundada e abordagens de prevenção e tratamento que priorizem a saúde pública
e a dignidade humana, em detrimento de soluções meramente punitivas.

As recentes discussões e alterações na legislação brasileira sobre drogas, especialmente a Lei nº 11.343/2006 e as decisões do Supremo Tribunal Federal, evidenciam a tensão entre diferentes visões sobre o problema. Enquanto a PEC das Drogas busca uma criminalização mais ampla, a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal pelo STF aponta para uma abordagem mais humanizada e alinhada com a saúde pública. Essa dualidade ressalta a urgência de um debate mais aprofundado e baseado em evidências, que transcenda a polarização e busque soluções integradas.

Nesse contexto, o profissional da criminologia emerge como um ator indispensável. Sua expertise na análise do fenômeno criminal, na formulação de políticas baseadas em evidências e na defesa dos direitos humanos é crucial para a construção de uma segurança pública mais eficaz, justa e humanizada. A criminologia oferece as
ferramentas para desvendar as raízes da criminalidade relacionada às drogas, propor alternativas ao modelo repressivo e promover a reinserção social, a prevenção e a redução de danos. É imperativo que a sociedade e o Estado reconheçam a dependência química como uma questão de saúde, e não apenas de polícia, e que invistam em políticas que promovam a vida, a saúde e a justiça social, com a criminologia desempenhando um papel central na orientação dessas transformações necessárias.

Erika Toledo
Criminóloga

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